- Meu Deus! Dormi num motel... MEU DEUS! COM QUEM?
Respirou profundamente, apertou os olhos e começou a recitar mentalmente um mantra: que seja com a minha mulher, que seja com a minha mulher, que seja com a minha mulher... Sentiu o corpo estremecer ao ouvir a voz feminina (e nada familiar!) ás suas costas.
- Já se levantou? Dormiu bem? Estou com uma fome de leoa! Venha, o café acabou de chegar...
Girou lentamente nos calcanhares e balbuciou um "já vou" meio ininteligível. A cabeça latejando com o rodopiar da pergunta: com quem? com quem? com quem? Aparvalhado, sai do banheiro e refaz o trajeto até o quarto. Em algum lugar ainda em não-pânico no seu cérebro tenta buscar algum registro, qualquer registro! Desanimado, olha para as quatro garrafas de vinho na cabeceira da cama: com certeza não encontrará registro.
Repentinamente se deu conta de sua nudez. Correu até a cama e enrolou-se nos lençóis de cetim negro. O contato do corpo com o tecido gelado não lhe trás nenhum conforto a não ser o de não ser pego nú. Já dizia seu pai: explica-se até batom na cueca, mas nú, nú, não há saída possível. A situação era tão absurda que temia abrir a janela e uma revoada de hipopótamos invadir o quarto.
As portas abriram-se deixando passar a soleira uma figura esguia e branca. Mãos longas, rosto anguloso de imensos olhos escuros. Uma pose um tanto afetada, nariz empinado, estendeu-se numa reverência pantomímica e com a mesma voz feminina e nada familiar que soou a pouco pela porta do banheiro, anuncia:
- Vossa Reverendíssima, para que é esta expressão abissal?
Embola o lençol que lhe havia escapado das mãos com o susto, mais pela a frase do que pela a moça. Como no despertar de um sono de Lexotan reconhece a figura a sua frente. O que não melhora em nada a sua situação.
- Eu havia lhe dito que queria, você disse que iria ajudar, eu julguei que a única forma seria satisfazendo meu desejo.
- Ahn? Eu ia lhe ajudar a se tratar e não... e não... Ah, o que você fez comigo esta noite?
- O que eu fiz?
Jogando a cabeça para trás num gesto brusco e vulgar ri escandalosamente:
- NÓS fizemos, e como fizemos! Acredite doutor, você nunca ficará sem um bom dinheiro caso algum dia desista de sua profissão.
- Escute aqui, você me respeite! Eu tenho mulher e filha de quem gosto muito, não faço idéia de como vim parar aqui, mas estou certo de que não foi por minha vontade.
- Certo, você dormia enquanto vínhamos para cá...
- Você me seqüestrou? Enquanto eu dormia? Eu deveria chamar a polícia...
- Hora, deixe de bobagens, você já é bem grandinho. Aceitou sair para tomarmos um drink, bebeu um pouco de mais, e aceitou que eu lhe deixasse em casa pois não estava em condições de dirigir.
- E então você se aproveitou e me trouxe para cá? Sua louca! Sim é isso que você é, completamente louca!
Recolhendo o sorriso cínico, choramiga algumas palavras.
- Não, eu não sou louca, eu não sou louca, eu apenas gosto, amo você!
- Me ama? Você me conheceu há 1 semana!
- Mas sou assim, desde pequena, amei o leiteiro, o entregador de revistas, a camareira do hotel, o professor da quarta série! Ah, eu o amei na primeira vez que o vi, sabia que podíamos ser felizes para sempre, mas ele me rejeitou! Acho que é este meu problema, as pessoas me rejeitam, apenas por que amo de verdade! Acredito no amor! Ele TEM que ser vivido! Tenho apenas 17 anos, mas acredite doutro, eu sei o que é o amor!
- Ah não, menor de idade? Céus, além de tudo vou ser preso! Aliciamento de menores, que bonito vai ser: pai de família, psicanalista respeitado no meio acadêmico leva paciente adolescente para divã em motel. O que eu fiz? O que eu fiz para merecer isto!
Voltando ao sorriso cínico, e enxugando as lágrimas.
- Não querido, não, isto não acontecerá com você, vamos para casa de meus tios em Lisboa, eles estão fora e não se importarão de ficarmos uns meses por lá. Veja, já comprei nossas passagens.
- Mas será que você não entende? Eu amo minha mulher, minha filha! Você tem seus pais, deveria estar com eles, no colégio estudando, ou em qualquer outro lugar que não aqui, neste motel, com seu analista! E ainda 30 anos mais velho que você! Vai dar para alguém da sua idade, menina!
- Por favor, não me rejeite, eu já preparei tudo, vamos ser felizes, você me entende, é essa sua profissão! Você entende e ajuda as pessoas! Venha, vista suas roupas e vamos passar lá em casa, pegar nossas malas, o avião sai as 19:00!
Enquanto procura vestir novamente suas roupas de baixo sem deixar que o lençol caia, olha em volta a procura do resto de sua capa civilizatória. Encontra-a encharcada de vinho, rasgada. Os botões da camisa já eram. A calça com o zíper estourado. Começa realmente a apavorar-se. Tenta o tipo autoritário:
- Me leve até o bar onde estávamos. Já! Preciso pegar meu carro e ir para minha casa. E você, volte para casa de seus pais, e procure outro analista, não há mais como atende-la.
Ri, desta vez histericamente:
- Você não acha que vai ser assim fácil não é? Estou cansada de ser deixada, de não ser amada, não quero outro analista, não preciso de analista, seu amor me curou! O amor da minha vida é você e não vou perder mais uma.
- Por favor, saia da frente desta porta ou eu...
- Hah, ou você o que?
Olha em volta, as janelas imensas indicam que o chão é próximo. vai sair correndo de cuecas pela rua agora mesmo! Mas ela é mais rápida (pudera, 30 anos menos) e debruça-se no parapeito aos berros:
- Socorro! Socorro! Este homem me roubou, abusou de mim!
Recua da sua idéia de fugir. Derrotado. Vencido. Tenta o tipo estou-entrando-no-seu-jogo:
- O.k.! Por favor, fique quieta meu bem, meu bem, fazemos assim. Fique calma, ok? Você deixa eu ir até minha casa, coisa rápida, tempo de preparar minhas malas e lhe encontro no aeroporto, está bom assim meu amor?
Com um olhar esgazeado e levemente assustador, em verdade, a essa altura, muito assustador começa a falar mansamente com voz de bicho no cio
- Não precisa, amor, já passei na sua casa e preparei suas malas. Já está tudo em minha casa, só precisamos passar lá e partir para nossa felicidade.
- Você o que? Não acredito, você está blefan...Onde, onde conseguiu este chaveiro? – intrigado - É igual ao da minha filha...
- Ela não queria me emprestar, então tive que insistir... Ela só me entregou as chaves depois que eu insisti muito. Muito mesmo. Teimosinha sua filha não? Garota mimada, tsc, tsc. Mas agora ela não lhe dará mais trabalho.
- Não?
- Oh, não. Nem a sua mulher, que insistia em não me deixar entrar no quarto. Aliás, muito bonito o lustre que vocês têm no quarto. Sólido. Forte. Dá até para pendurar um corpo lá...
- Corpo? Como assim um corpo?
- Não sei como lhe dizer, bem... Apenas não se preocupe mais com sua família viu amor?. Esqueça isso. - e com um sorriso sacana - Sou sua leoa, lembra-se?
Senta-se na cama, procura algo para se matar: a garrafa de vidro? Desencapar o fio do abajour?. Abre a gaveta do criado-mudo e não acredita ao ver A Bíblia Sagrada. Demoraria muito engoli-la para tentar morrer de indigestão. Entrega os pontos. Completamente entregue, tenta o tipo pai-de família:
- Escuta minha jovem, falta quanto tempo para você atingir a maioridade?
- 4 dias.
- E a passagem é para que horas?
- 19:00, primeira classe.
- Certo, sabe me dizer se escolhemos o pernoite ou por hora?
- Pernoite, por que?
Acha uma garrafa com um resto de vinho, bebe de um gole só e avisa:
- Leoa, pula pra cá, que essa cama vai ficar mais quente que a savana africana!
E sabe de uma coisa? Esse foi um dos poucos que se salvaram das várias formatações de minha máquina. E sim, também foi muito estranho lê-lo novamente depois de tanta água ter passado por debaixo da ponte. Quase nem reconheço mais o que é meu texto e o que é do Nauseabundo. Seria legal ter visto este texto publicado. Seria legal ter conseguido a porra da grana de volta.
Um comentário:
Se não me engano ja tinha lido esse nos anjos de prata! Ou em algum outro lugar do qual não me recordo agora!
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