terça-feira, maio 27

Vôo Livre (de novo)

Chuva graúda batendo nas vidraças e relâmpagos acendendo o céu. Sentia-se personagem de Mary Shelley nas primeiras horas de sua existência. E era a exata sensação de estar dentro de um clichê, embora soasse estranho Era como se Adoniran Barbosa tivesse escrito uma peça inteira para orquestra. Sentia-se no completo absurdo. A sede... Essa era a chave? Mas que porta abrir? Apenas tinha sede. Então não era um clichê? Ou o era, mas fora do lugar. Mas algo dentro dele não sentia-se assim. Sabia muito bem por onde conduzir-se, ele sabia, embora não pudesse acompanhar seus passos. Sentiu-se sacudido com violência e levantou os olhos. Não compreendia o que lhe diziam, mas tudo lhe parecia ameaçador.

Tentou erguer-se, pois vagamente adivinhou que era isso que lhe ordenavam. Tudo a sua volta tinha o cheiro acre das coisas velhas e esquecidas. O cheiro invadiu suas narinas e tomou conta de sua alma. E ele sentiu-se também velho e esquecido. Não pode levantar-se sem ajuda e foi colocado em uma cadeira a frente de uma escrivaninha decadente. A cadeira pouco se importava com sua presença, nem um estalido, nem um ranger denunciava seu peso sobre o assento. Tentou pronunciar palavras e todos o olharam estranhamente. Compreendeu que o som que saia de sua boca era ininteligível. Desistiu. Era inútil qualquer pergunta já que começava a desconfiar de todas as respostas.

A sede enfim saciada. A última coisa ainda relativamente clara em sua memória era uma sensação que toma conta do corpo depois de uma boa trepada. Indicaram-lhe, entre gestos rudes e safanões, que deveria beber da caneca em suas mãos. Um aroma doce e enjoado desprendia-se da fumaça que subia do líquido escuro. Tentou um gole e foi acometido por violentos espasmos. Mergulhou em águas profundas, voltou a tona e agora flutuava pela sala. A caneca lhe pedia calma enquanto a cadeira dançava a sua frente. Absurdo! Ele era o próprio absurdo! Começou a rir histérico. E o corpo macio e quente sob o seu? Estava uma ou duas doses acima da humanidade.

Sua mente abriu-se subitamente como que partida ao meio. O corpo rígido e frio ao seu lado. Não podia... Compreendia tudo agora! Já tinha suas próprias respostas. O punhal... Uma dor suave e constante começava a lhe abrir o peito querendo dizer ao mundo que alguma coisa habitava ali. Os gritos... O gozo... Algo dentro dele começava a se mover secretamente e desejava a liberdade. O sangue... A sede... Movia-se cada vez mais rápido e decididamente, abrindo caminho em seu peito. Não queria e nem seria possível a ele resistir. Num jorro convulso a coisa saltou de seu peito e desapareceu rindo por um vão do assoalho.

Estava vazio, no entanto leve. Ao seu redor bocas de beijos profundos. Mãos e afagos adivinhavam a sede que sentia em dias de tempestade. Olhos gentis o ampararam e deram de beber a sua alma. Aquietou-se e seu coração adormeceu. E com o coração quieto pode finalmente compreender o que fazia ali e como chegara. Não sentia horror nem tão pouco prazer pelo que fizera. Sentia apenas paz. Nunca mais sentiria sede, jamais voltariam os dias de tempestade (embora soubesse que também não haveriam mais dias ou noites).

Muitas vozes o advertiam docemente: outros estariam chegando em breve e era preciso dar lugar a eles. Ele assentiu dócil e quase feliz. Dirigiu-se até a janela, aspirou com prazer o ar gelado, experimentou as asas vigorosas de sua nova condição e saltou, sereno, para a rua.

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