quarta-feira, novembro 16

Lobotomia alternativa

“Amaranta não saiu do quarto. Ouviu de sua cama o pranto de Úrsula, os passos e murmúrios da multidão que invadiu a casa, os uivos das carpideiras, e depois um profundo silêncio cheirando à flores pisadas. Durante muito tempo continuou a sentir o aroma da lavanda de Pietro Crespi ao entardecer, mas teve forças para não sucumbir ao delírio. Úrsula abandonou-a. Nem sequer levantou os olhos para se apiedar dela, na tarde em que Amaranta entrou na cozinha e pôs a mãos nas brasas do fogão, até doer tanto que não sentou mais a dor, e sim o fedor da sua própria carne chamuscada.”

(Cem anos de solidão - Gabriel García Márquez)

Nenhum motivo especial. Aliás, banalidade das banalidades (?). Mas quantas vezes eu quis queimar as mãos na brasa do fogão simplesmente para esquecer os padecimentos de meu pirado intelecto? Ser corpo apenas, burrinha da silva (e gostosa, claro, que outra forma de nada me serve ser burra), e ignorar completamente que penso; logo tenho problemas existencialistas do mais refinado grau. Mais ou menos como uma lobotomia não-invasiva, sacou?

E ainda a pouco falávamos, numa mesa de bar, sobre idiossincrasias corporativas e do desejo profundo que nos inspirava à torcer araminhos na praça central.

Pesando bem, precisarei das mãos intactas.

Um comentário:

rednosedraindeer disse...

Li esse livro ha pouquissimo tempo

A M E I

é fabuloso. Essas personagens. Amaranta e Ursula, duas mulheres bestiais. E a liga na mão de Amaranta a marcá-la até à sua morte, que avisou que a iria buscar e a deixou tecer a sua própria mortalha. E o desprezo fingido de Amaranta pelo seu grande amor. Muito forte.

Quanta beleza pode haver naquilo que é triste...