Tentou erguer-se pois vagamente adivinhou que era isso que lhe pediam. Tudo a sua volta tinha o cheiro acre das coisas velhas e esquecidas. O cheiro invadiu suas narinas e tomou conta de sua alma. E ele sentiu-se também velho e esquecido. Não pode levantar-se sem ajuda. Socado numa cadeira a frente de uma escrivaninha decadente. A cadeira pouco importava-se com sua presença, nem um estalido, nem um ranger denunciava sua peso sobre o assento. Tentou pronunciar palavras de socorro e todos o olharam estranhamente. Era inútil qualquer pergunta pois começava a desconfiar de todas as respostas.
Era seu dever saber onde estava e no entanto em sua agenda nada estava programado para aquele dia. Nem endereços, nem nomes. Era noite de tempestade e seu único compromisso era o de apenas saciar desejos e sentir prazer. Não haveria espetáculo aquela noite? Dirigiria sua própria peça! Os amigos não lhe telefonavam? Compraria alguns! A sede enfim saciada. A última coisa ainda relativamente clara em sua memória era uma sensação boa, como a languidez que toma conta do corpo depois de uma boa trepada.
Entendeu que estava ali para falar simplesmente. Confessar, sabe-se lá, falar! Mas não se sentia capaz, e não por falta de coragem posto que sempre fora um homem de fibra. Se sentia literalmente incapaz; desprovido da capacidade de falar. Nada se articulava. A angústia lhe embotava os sentidos. Lhe indicaram, entre gestos rudes e empurrões, que deveria beber da caneca em suas mãos. Um aroma doce e enjoado desprendia-se da fumaça que desprendia-se do líquido escuro. Tentou um gole e foi acometido por violentos espasmos. Mergulhou em águas profundas, e agora flutuava pela sala. A caneca lhe pedia calma enquanto a cadeira dançava a sua frente. Absurdo! Ele era o próprio absurdo! Começou a rir histérico. Cadê o corpo macio e cheiroso que estava sob o seu?
Começava a compreender algo. Estava uma ou duas doses acima da humanidade. Sua mente abriu-se subitamente como que partida ao meio. Sentiu o olhar claro e a garganta frouxa; cambaleou. O corpo rígido e frio ao seu lado. Não podia... O punhal... Uma dor suave e constante começava a lhe rasgar o peito querendo dizer ao mundo que alguma coisa habitava ali. Os gritos... O gozo... Algo dentro dele começava a se mover secretamente e desejava a liberdade, embora durante o cárcere se alimentasse de suas vísceras. O sangue... A sede... E se movia cada vez mais rápida e decididamente. Não queria e nem seria possível a ele resistir. Num jorro convulso explodiu em toda a sua força e essência. Usando seu espanto como trampolim, a coisa saltou de seu peito e desapareceu rindo pelo vão do assoalho.
Sentia-se agora vazio, no entanto leve. Ao seu redor bocas o roçavam com beijos profundos. Mãos o afagavam e adivinharam a sede que sentia em dias de tempestade. Olhos gentis o ampararam e deram de beber a sua alma. Aquietou-se e seu coração adormeceu. E com o coração quieto pode finalmente compreender o que fazia ali e como chegara. Não sentia horror nem tão pouco prazer pelo que fizera. Sentia apenas paz. Nunca mais sentiria sede pois jamais voltariam os dias de tempestade (embora soubesse que também não haveriam mais dias ou noites). Uma sucessão de enganos bem comuns. Milhões de vozes o advertiram docemente: outros estariam chegando em breve e era preciso dar lugar a eles. A sala tornou-se luz e aconchego e então sentiu que poderia voar. Experimentou as asas vigorosas de sua nova condição e saltou, sereno, em direção a rua.
Luciana Priosta
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